Vejamos a comparação entre duas culturas, a Netsilik e a Mundugumor com dados de pesquisa que se referem à questão do cuidado que a cultura provê ao bebê no primeiro ano de vida e ao tipo de relações sociais que caracterizam cada uma dessas sociedades.

Os esquimós Netsilik dispensam à criança, no primeiro ano de vida, uma maternagem em que o bebê se encontra sempre próximo ao corpo da mãe e, por isso, o atendimento às necessidades vitais da criança é privilegiado. Por outro lado, os Mundugumor, da Nova Guiné, tratam seu recém-nascido com rudeza e brutalidade, praticando uma maternagem agressiva e não amparadora.
Dois tipos de maternagem em duas sociedades cujas relações sociais se dão de maneira diversa e as diferenças sociais seguem no mesmo rumo do tipo de tratamento – mais ou menos violento -  que a criança recebeu quando pequena. 

Os Netsilik

Os Netsilik são esquimós da península de Boothia, no nordeste do Círculo Ártico Canadense. Foram estudados por Richard James De Boer, que morou com a tribo num iglu e centrou seu interesse em pesquisar o tipo de relação mãe-filho que se desenvolve nessa cultura.

De Boer descreve a mãe Netsilik como tendo uma personalidade tranquila, embora viva em difíceis condições, e que dá aos filhos calor humano e atendimento amorosamente maternal. O bebê Netsilik, desde o nascimento, é carregado nas costas da mãe até que possa se locomover sozinho. Durante o período de exterogestação ele permanece praticamente despido, apenas com uma pequena fralda, aconchegado na pele das costas da mãe, num contato que se prolonga o dia todo.

Em consequência da extrema proximidade dos dois corpos, a mãe pode perceber mais rapidamente as necessidades do bebê, lhe proporcionando, por exemplo, limpeza e alimentação no momento adequado, sem que ele fique abandonado ao acúmulo de sensações frustradoras. Outro fator que causa grande tranquilidade e segurança ao bebê é o fato de não só ter a presença da mãe praticamente o tempo todo, como o de ser embalado constantemente pelos movimentos dela em suas tarefas diárias.

As respostas do bebê ao tratamento satisfatório da mãe são, invariavelmente, agradáveis. Para o pesquisador De Boer, a regularidade e a tranquilidade do tratamento que o bebê recebe e que gera essa invariabilidade de resposta de prazer é a explicação para a capacidade dos esquimós Netsilik de enfrentarem situações de estresse.

É possível assemelhar o tratamento dado pela mãe Netsilik ao seu bebê ao que Winnicott chama de “preocupação materna primária”: “Se a mãe fornece uma adaptação suficientemente boa à necessidade, a linha de vida do bebê é perturbada muito pouco por reações à intrusão. As falhas maternas produzem fases de reação à intrusão, e tais reações interrompem o ‘continuar a ser’ do bebê. Um excesso de reações não produz frustração, mas um ameaça de aniquilação. Isto, em meu ponto de vista representa uma ansiedade muito primitiva, bem anterior a qualquer outra que inclua em sua descrição a palavra ‘morte’.”

Tudo o que acabamos de colocar fará mais sentido se nos lembrarmos do estado fetal no qual o bebê humano nasce aos nove meses de gestação. Parece que os Netsilik, mesmo sem saber, contemplam seus bebês com um cuidado apropriado à sua prematuridade. O tempo em que a mãe Netsilik carrega o filho colado às costas corresponde ao período de exterogestação, em que o bebê humano termina seu amadurecimento anatomo-neuro-fisiológico.

A atitude da mãe Netsilik em relação a seu bebê é tão mais apropriada se se levar em conta a teorização de Winnicott sobre o “holding”, o segurar o bebê. Ele afirma que “... o protótipo de todos os cuidados com os bebês é o ato de segurá-los... um bebê a quem seguram bem é muito diferente de outro, cuja experiência de ser segurado não foi muito positiva... não o seguraram de forma suficientemente boa, e o resultado é que o seu desenvolvimento teve de ser deturpado e protelado, e algum grau da primitiva agonia estará sempre presente ao longo de sua vida.”

É exatamente o cuidado materno adequado, ‘suficientemente bom’, que vai suprir a defasagem em que nascemos e que nos é tão pesada em suas consequências por toda a vida. Consideramos que o que vivemos nesse período vai balizar a nossa forma de sentir no mundo e construir nossa existência. Então, chegamos ao momento de responder à pergunta sobre o tipo de adulto e de sociedade que a cultura Netsilik produz.

De acordo com De Boer, os adultos Netslik são raramente ou nunca invadidos por estímulos aversivos ou indutores de estresse por parte de outros indivíduos. Devido a características como essas, pensamos poder afirmar que parece não haver entre eles a manifestação perturbadora da prevalência do registro imaginário que, como sabemos, é o registro da agressividade e da confusão com o outro. Poder-se-ia dizer que eles não se misturam facilmente por terem os limites subjetivos bem constituídos.

Segundo o relato antropológico, eles são capazes de enfrentar com segurança e serenidade as incertezas de seu ecossistema, ou seja, têm um grande equilíbrio homeostático. Pensamos que se eles lidam bem com a instabilidade do mundo é porque têm uma forte estabilidade interna construída na relação com a mãe no princípio da vida. Eles são calorosos, amistosos, agradáveis e receptivos.

Os Mundugumor

O povo Mundugumor vive na nova Guiné, numa região ribeirinha e sua sociedade é composta por pessoas relatadas como sendo extremamente “agressivas, hostis, que vivem entre si em estado de desconfiança recíproca e de incômodo generalizado.” (Montagu, 1988, p. 306).

Montagu, que buscou conexões entre as primeiras experiências da infância e o desenvolvimento da personalidade adulta, afirma que com a experiência de socialização da criança Mundugumor não nos surpreende que sua sociedade tenha se constituído como uma sociedade canibalista (até 1930; desde então, houve mudanças).

A chegada de um novo bebê na sociedade Mundugumor é, desde a gravidez, motivo de irritação e preocupação, uma vez que o casal deve interromper sua vida sexual sob o risco da mulher ser ‘reengravidada’ tendo, por esse motivo, filhos gêmeos. O pai fica irado, pois é um homem marcado, não podendo participar de várias atividades e descontará sua raiva na mulher cuja ‘magia anticoncepcional’ foi ineficiente. A mulher também não tem motivo para se alegrar com a situação pois, além de sofrer a ira do marido e privação sexual, correrá sério risco de ser abandonada pelo marido, que poderá buscar outra esposa para si. Haverá muita discussão a respeito de se preservar a criança ou jogá-la no rio. Sua vida ou morte dependerá de seu sexo e do desejo de um dos pais que prevalecer.

A maternagem dos Mundugumor, segundo o relato antropológico, não tem movimentos carinhosos com o bebê e é feita de forma violenta e hostil, como, por exemplo, na situação da amamentação, quando a mãe se impacienta com o bebê, que é levado a mamar rapidamente, o que faz com que ele se agarre ao seio com força, frequentemente engasgando por engolir rápido o leite. Devido a isso, a mãe se enfurece tornando o momento da amamentação numa experiência de “raiva e frustração, luta e hostilidade, em lugar de afeto, tranquilidade e contentamento.” (Montagu, 1988, p. 307). Tudo isso desenvolve no bebê, segundo o pesquisador, uma atitude bélica, com a criança tendo que lutar para obter um pouco daquilo que não lhe querem dar.

Segundo o relato de Margaret Mead, o bebê Mundugumor é um ser enxovalhado, que leva uma vida sem amor, suspenso em uma sacola que alguém raspa com as unhas quando ele está chorando, como forma de apaziguamento. Desde o nascimento, quando é carregado, isso é feito em uma cesta de fibras “ásperas, duras, inflexíveis e opacas”, suspensas na testa da mãe, onde não há contato com o calor do corpo dela.

O desmame é feito com violência, com a mãe repudiando a criança, empurrando-a e estapeando-a, tentando, com esses gestos, afastá-la do seio. Também não é incomum que mães passem uma seiva amarga nos mamilos, forçando a criança a aceitar outro tipo de comida. Logo que aprende a sentar, ela é deixada no chão e aprende a andar sozinha. Assim que começa a andar é puxada violentamente pelo braço e espancada quando se afasta de casa e, quando fica amedrontada ou zangada, não lhe costumam dirigir carinho ou manifestação de compreensão e amparo.

Na sociedade Mundugumor permanece-se criança até a adolescência, quando são incumbidos de executar um cativo para o ‘festim canibal’. Caso o adolescente não consiga, será grande a vergonha para si e para seus parentes. A iniciação sexual se dá aos doze ou treze anos, porém é vista como um privilégio para os meninos e um castigo para as meninas. Nos ritos de passagem, os meninos são golpeados, amaldiçoados e escarificados com evidente prazer de seus atormentadores. Na verdade, as iniciações são um mecanismo de acentuar as hostilidades, se tornando um pivô de brigas entre meninos e meninas, pais e filhos, iniciados e não-iniciados. Parece que todos os motivos são usados para a descarga de um imenso montante de agressividade.

O fato de uma sociedade que materna seus bebês de forma agressiva e violenta se tornar uma sociedade agressiva e violenta, enquanto outra em que os bebês são recebidos com muito contato físico, cuidado e amor ser uma sociedade de pessoas seguras, equilibradas, e amorosas, tem para muitos antropólogos como Ashley Montagu, uma linha de correlação direta entre a maternagem e o tipo de sociedade que esse processo gera.
Ou seja, o modo de maternar o bebê, define o modo de ser de uma sociedade.

Luciene Godoy - Psicanalista